Bem no sertão de Minas, numa cidadezinha chamada Cordisburgo, lugar pacato e acolhedor, cujo nome significa “Cidade do Coração”, viveu Clóvis Beraldo de Carvalho, mais conhecido por todos como "Barriga", apelido divertido que deixava muita gente intrigada e curiosa. Barriga era uma figura! Homem honesto, caridoso, boêmio, brincalhão e dono de uma sinceridade incomparável. Gostava de tocar seu violão, numa roda recheada de amigos, acompanhado de uma boa cerveja gelada. Seu copo durava o tempo de uma música, cheio até o gargalo, quando de um gole só o bebia até o final, um ritual que se repetia enquanto durasse a farra.
Ele não perdia uma piada, era mestre em colocar apelidos que grudavam feito cola e sempre “pegavam” gostassem ou não os agraciados. Os apelidos ficaram famosos em toda a cidade, nem mesmo os amigos escapavam de suas ironias. Era de uma presença de espírito inigualável! Suas alcunhas eram muito certeiras, não tinham denominações melhores. Alguns dos famosos apelidos ecoam pelos ares até o presente momento: “Dor de Dente”, “Pé de Pombo”, “Irmã de Caridade”, “Pé de Cocô”, “Carão”, “Cabeção”, “Criolina”… Até uma rua da cidade, tida como muito ativa e intensa coube o codinome, “Tira Cinza”. Provas vivas do seu grande talento em nomear.
Todas as tardes gostava de ir até a Barraca do Sassá, na Avenida Padre João, sentar no “murinho da vergonha” para atualizar-se dos acontecimentos da cidade, juntamente com "Precatão”, "Brasinha", "Salvador", Cecílio, Renê e outros que se aventurassem. O papo ali era geral e rendia fervorosamente, alguns saiam felizes, outros por vezes não, pois eram vítimas de gozação, o que explica o famoso nome dado ao muro. Ali, várias histórias foram ouvidas e contadas.
Estava sempre rodeado de amigos, era ferroviário aposentado, pai de três filhos: Érica, Érico e Priscilla. Os nomes dos dois primeiros, foram em homenagem a Érico Veríssimo, escritor brasileiro que ele venerava. Sua esposa, Élia Barbosa, uma professora de excelência, mulher elegantíssima que caiu aos seus encantos de galanteador. Era poetisa, compôs várias letras de música com ele, o qual como um bom romântico a presenteou com uma canção de amor.
Barriga viveu 75 anos bem vividos, aproveitou muito a sua estada aqui. Até que chegou o dia da sua passagem... Todavia, ninguém estava preparado para o que seria seu velório, um evento cheio de acontecimentos engraçados, que parecia ter sido planejado por ele mesmo.
O corpo chegou por volta das 7 horas da manhã no velório. Nesse momento, quando só estavam presentes suas filhas, Érica e Priscilla, chegaram duas senhoras que o olharam no caixão e espantadas se perguntaram:
- Mas quem é ele? - sussurraram entre si.
Sem saber, reportaram a uma das filhas que respondeu:
- É o Barriga!
Ao tomarem conhecimento, com ar de surpresa, falaram:
- Nossa ele ficou tão acabadinho!
As filhas se entreolharam e apesar da tristeza, caíram em risos disfarçados.
Barriga adorava bichos e os cachorros eram os prediletos. Acreditem se quiser, um cachorro, durante o seu velório, abocanhou o tapete da porta da entrada e saiu em disparada em direção a rua. Uma de suas filhas foi atrás do cão, gritando, até que o alcançou, depois de muito correr. Ufa, tapete recuperado!
Mais tarde, um sobrinho, amante de uma cachacinha, aos pés do caixão clamava:
- Tio… leva embora essa desgraça dessa cachaça minha!
Contudo, desistiu logo depois, falando:
- Ah, quer saber? Deixa prá lá, né!
E como um bom cruzeirense, Barriga dizia que não aceitaria nenhum atleticano carregar seu caixão. Na hora do enterro, sai o cortejo, rumo ao cemitério, e eis que lá estavam nas alças da frente, segurando com força, dois atleticanos: Paulinho “Gordo” e Jean, o genro. Ao chegarem à beira da cova, a terra estava úmida, pois havia chovido bastante. Paulinho pisou na beirada e com seu peso causou um desmoronamento, que acarretou na sua queda dentro da cova, puxando junto consigo o Jean, o qual assustado, numa ligeireza de um salto, voltou pra superfície. Já Paulinho, com seus quilos extras, entretanto, não teve o mesmo desfecho e custou a se ver livre daquela situação embaraçosa. O ambiente foi tomado por risadas que vinham de todos os lados. “Atleticanos vingados”, pensaram muitos, imaginando Barriga gargalhando no além, satisfeito com o ocorrido.
Após o grande tumulto, quando o caixão enfim estava posicionado no interior da cova, inesperadamente, ouve-se o som do apito do trem de ferro que passava pelas redondezas. Era um som agudo e melancólico, cheio de significados, que apesar da coincidência, parecia ter sido engendrado pela própria vida. Foi o som do último aceno para um ferroviário apaixonado pelo que fazia.
Barriga se foi, mas seu espírito brincalhão ficou eternizado em Cordisburgo.
Mesmo após sua partida, era fácil imaginá-lo em um lugar com seu violão de lado. E uma coisa é certa: onde quer que ele esteja, ainda está espalhando seus apelidos e levando alegria, como só ele sabia fazer.
Texto de Priscilla Barbosa
COMENTÁRIOS