Estou em atraso com esta coluna, mas prometo
recompensar, desta vez vocês vão ter de me aturar com três crônicas de uma vez
só. Meus motivos são justificáveis. O antropólogo Claude Levi-Strauss conta
que, andando com os índios pela mata, de quando em quando eles paravam e
ficavam atrás de uma pedra, em silêncio. Intrigado foi perguntar o porquê das
paradas. Eles explicaram que os brancos estavam imprimindo um ritmo muito forte
à caminhada, então a alma deles ficava para trás, por isso tinham de parar, para esperar a alma.
Ocorre comigo e com a maioria dos meus amigos que vão
para o sertão fenômeno parecido. A gente volta, mas a alma demora pra chegar,
envolta ainda nas emoções da travessia com tanta coisa para digerir. Mas logo
de cara devo adiantar, a Semana Roseana de 2022 foi uma emoção, mais que isso,
uma comoção. Para quem não foi, me permita ser o seu Grivo.
Aos poucos todos foram chegando: Tereza Cristina veio
de Campos de ônibus, demorou 24 horas para aportar em Cordisburgo. Vandinha de
logo ali, Paraopeba, trazendo nosso amigo Mura. Cumadi Katia, de BH, com o
porta-malas cheio de vinhos pra brindar. Pedro, Nádia, Sueli e Braga de carro.
Braga e Sueli depois de muito tempo sem vir. Linda e Marília rapidamente voaram
de Matrix a Confins e fizeram o caminho até Cordis de carro caçando mulungus a
meu pedido. Era a primeira vez de Marília, e a alegria e a felicidade dela de
ter pisado em solo sagrado me encheram de contentamento também. Paulo César e
Lilian, de Ribeirão Preto, também estreantes, vieram de carro, e pude ver o
brilho nos olhos deles como um sinal de um sonho realizado. Mônica Meyer veio
de pertim, Belo Horizonte e do Tangará, mas no sertão mergulhou feliz e com
graça no encontro com os amigos virtuais, que só conhecia na telinha, do pescoço
pra cima.
Cleide e Moises dirigiram de Itanhaém, passando por
São Paulo, para gentilmente conduzir a mim e ao Murilo, meu filho. Como diz a
Mãe de Miguilim em Campo Geral, um dia todos se encontram. Um encontro tão
esperado depois de dois anos de muita dor e muita reclusão. Ainda não foi o
encontro espetaculoso, um Baile dos Temulentos, mas foi o possível, o encontro
dos mascarados, dos abraços ainda receosos. Mas foi, e foi importante, um passo
grande na nossa cura.
Logo na segunda-feira à noite meu coração começou a
bater no mesmo compasso do som dos tambores da Guarda do Rosário na erguida do
mastro em frente ao Museu. Ali começamos a rever os amigos: Ronaldo, Fabio, Tiago, Lucas, Rachel, Duda,
Rafael, Dôra, Elisa, e tantos outros que moram no nosso coração. Nesta mesma
noite, uma grande mesa nos reunia no bar dos caldinhos. E foi aquela jarana,
aquela alegriolança, aquela festa de Manuelzão.
Na terça azul que irradiava uma luz que só no sertão
se vê, o encontro foi na Matriz do Sagrado Coração de Jesus, o coração da fé
que pulsa em Cordisburgo. Mais uma caminhada urbana, Da Boiada de 1952 ao Corpo
de Baile dava largada a uma semana de pura fruição, muito o que fazer e pouco a
descansar. No caminho eu parava para fotografar todas as “quisquilhas da natureza”:
a fogo-pagou encarapitada no pé de assa-peixe, as teias de aranha
meticulosamente urdidas nos baixios orvalhados do capim-gordura, o alpendre de
enormes samambaias de metro, a flor branca que passamos a chamar de Cordiburguense alba, os jardins caprichosos
de rosas solares.
E, aproveitando que estava perto, fui conhecer a nova
Loja do Brasinha. Sabia que ia encontrar uma profusão de objetos. Muitos ia
rever, outros eram novidade quieta pros meus olhos. O que perdemos na mudança:
a facilidade de nos encontrar na rua do Museu, o ajuntamento que se fazia o
tempo todo. O que ganhamos: uma casa enorme, um quintal maravilhoso, um belo
espaço pra Brasinha se esparramar com as suas criações, recriações e
instalações. Bendito seja Brasinha Gentileza do Rosário.
Enquanto Brasinha atendia um homem que passou por ali
a caminho de Curvelo, trazido pela reportagem do Globo Rural, fotografei, observei, colhi sementes do jardim de
brisas e girassóis amarelíssimos, enchi o emborná com limão-capeta e abacates
que nem os pássaros dão conta de comer. Mal começamos uma prosa e aparece,
apoiado num cajado, Sebastião Soares, que já adentra a Casa dos Objetos
narrando trechos de Grande Sertão,
bônus da Semana, sarau exclusivíssimo. Brasinha e eu temos uma teoria: uma
semana é pouco. Devia de durar duas semanas, uma para a programação oficial e
outra só para usufruir desses desacontecimentos importantes. A prosa que tive
com Brasinha sentado nas poltronas do antigo cinema, ela sozinha daria uma
crônica, que fico devendo.
Neste mesmo dia à tarde tínhamos um compromisso muito
importante: nossa Roda de Leitura na Casa que ele nos deixou de herança. A
primeira roda presencial desde março de 2020, reencontro de amigos reais e
conhecimento de amigos virtuais. Lemos Um moço muito branco, de Primeiras Estórias, que emociona pela
mensagem de acolhimento, de compaixão, de amor.
Ganhamos de presente o caprichoso livro Cordisburgo, a cidade da gente, projeto que mobilizou a garotada
das escolas públicas
a escrever sobre a cidade.
Logo estaríamos de volta ao jardim do Museu para O
Sarau Poético, espaço democrático em que todos têm voz e vez. Debaixo de uma
lua cheia a nos abençoar e iluminar, cantamos Não há, ó gente ó não, luar como este do sertão. Mais que poético o
sarau foi palco de textos pungentes denunciando o racismo, os abusos de todos
os tipos. Um sarau refletindo os tempos duros que estamos vivendo. Momentos
temperados também por humor, como quando seu Raimundo, com elegância e graça,
aceitou ser assistente de palco dos participantes.
No dia seguinte começaram as mesas-redondas. Depois de
16 Semanas Roseanas a gente se pergunta se ainda haverá novidade, e eis que nos
é apresentado um projeto maravilhoso, A Enciclopédia do Sertão. E não para aí,
Corpo e narrativa em Grande Sertão
nos surpreende, e Grande viés, a indumentária masculina em Grande Sertão: Veredas nos deixa atônitos, tal o refinamento da
pesquisa. E mais um projeto grandioso: A Exposição Sertão Mundo, da UFMG. Donde
se conclui que, sim, há em GSV tudo
que a gente queira ver, como dizia Antonio Candido.
Nas tardes, de novo no quintal do Museu, assistimos ao
batismo dos Miguilins formados pela competente e sensível condução de Dôra
Guimarães e Elisa Almeida. Que capacidade que eles têm de nos emocionar
continuamente. Meninos e meninas que nem eram nascidos nas primeiras edições da
Semana a que estávamos presentes estão lá, narrando, resistindo, se construindo
como cidadãos, dando continuidade a um projeto incrível, o que deixa a nossa
alma em constantes alegrias.
E neste ano uma grande inovação, que espero tenha
vindo pra ficar: a narração intimista nos espaços do Museu, com um público
reduzido, mas com reapresentações de maneira que todos conseguiram assistir a
todos os espetáculos. E pelo que eu ouvi dos Miguilins eles adoraram narrar o
mesmo texto mais de uma vez. E que momento foi aquele com a Elisa Almeida, com
direção de Cida Falabella, que nos apresentou A Benfazeja. As questões
levantadas por este texto voltaram comigo para Matrix.
Na mesa-redonda do dia seguinte, As primeiras estórias
e outras: a travessia criativa de Guimarães Rosa, o professor Luiz Claudio,
figura constante ao longo dos anos, nos trouxe uma reflexão profunda sobre a
obra de Rosa. E eu fiquei muito feliz e honrada como mediadora. Afinal, para
quem chegou em 2006 como mera repórter da National
Geographic fazer parte do bando de Joca Ramiro anos depois é uma glória.
E para fechar com chave de ouro o ciclo de palestras,
Dieter Heidemann, Nhô Dito para os íntimos, com o tema Os 70 anos da Boiada de
1952, nos convidou a refletir sobre a diferença entre o turista e o viajante,
dois olhares muito diversos de como percorrer uma paisagem.
E nosso amigo Gilson de Barros, ao logo da Semana,
veio com tudo trazendo o seu Riobaldo em monólogo e a leitura dramática do episódio
Maria Mutema.
Como todos os anos, há sempre uma programação extra,
fora da oficial, uma fogueira, um sarau. Neste ano a dupla maravilhosa Dôra e
Tiago nos brindou com uma narração pra lá de especial, numa noite absurdamente
estrelada e plena de uma lua como só no sertão se aprova.
Os vários lançamentos de livros atestaram que a obra
de Rosa dá muito pano pra manga ainda. A
montanha encantada, O léxico dos geraes, Dos sertões para as fronteiras e das
fronteiras para os sertões, e João e
o pé de sertão fizeram com que os viajantes voltassem com a bagagem bem
mais pesada. E a Editora Cartonera Catapoesia trouxe a sua publicação Quilindo sertão, uma beleza de trabalho.
Entre um evento e outro a gente saracoteou pelas
barracas de artesanato. Eu não resisti a uma saia que de tão linda chamei de Poesia de vestir. Também trouxe mel de assa-peixe, cartonarias do Catapoesia, bottons que carregam as palavras de Rosa
pelo mundo afora. Para enriquecer a minha coleção de enxadas e enxadões, me
apaixonei com a (des)foice que trazia inscrita uma frase tão necessária, que
conversa com a prosa do primeiro parágrafo: “O certo é a gente viver
devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”.
Quando a gente vê, com espanto desmedido, já é
sexta-feira de noite, precisamos dormir cedo, estar inteiros para a Caminhada
Eco-Literária. O café da manhã na Escola Mestre Candinho, desta vez cercado de
cuidados, luvas, máscaras, é sempre um momento de muitos encontros e de
reencontros com aqueles que vêm só para esse dia. Di Souza deu um show de
narração. Depois de anos cantando, ele vem se aventurando a ser Miguilim, de
maneira muito suave. Sorte nossa, que ganhamos mais um narrador.
No meio da poeira, fomos aboiados por Brasinha, o fio
condutor dessa travessia, amarradinhos em Deus. Em cada parada a sombra de uma
árvore, dessas que servem aos bois para descansar, nos acolhia para mais uma
narração. Daiana, Lecy, Fabio, Duda lá estavam, narrando e resistindo. E neste
ano uma surpresa: Tiago. Que emoção. Cumpríamos mais uma bela e magnífica
travessia nos e com o Caminhos do sertão. Mas eu sinto muita falta de a Caminhada terminar naquela confraternização que
eram os almoços no restaurante da gruta. Quem sabe não esteja na hora de rever
isso?
Confesso que o cansaço me impediu de assistir o show
do Téo Azevedo, que encerrou a semana, mas meus grivos deram conta que foi
ótimo, e de quebra ganhei o Léxico
catrumano, que passa a fazer parte da minha Roseana.
Foi muita informação, muita emoção para processar,
ainda estou nesta digestão. Vou terminar com uma lembrança guardada na minha
retina, um evento mais que especial. Valeu a pena ter acordado às 5 da manhã
pra caminhar com o incansável e múltiplo Ronaldo e o cumpadi Moises na estrada
da gruta, assistindo aquele colosso de lua fulgurar detrás da serra de um lado
e se embasbacar com o sol nascendo do outro por trás de palmeiras e trincheiras
de árvores do cerrado. E na volta, já com o dia claro, se deliciar com a
profusão de pássaros em alegre algaravia. Vamos incorporar mais esta atividade
nas nossas Semanas? Ano que vem quem quiser nos acompanhar o convite está
feito.
Paro por aqui com a Semana Roseana oficial. Mas em
seguida vem a prometida segunda crônica.
Foto de Capa: Ronaldo Oliveira
Demais fotos: Regina Pereira
Quanta emoção ❤️🌹
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