I- Introdução
A Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) serviu de inspiração para João Guimarães Rosa em sua magistral obra. Como capitão-médico serviu no 9º Batalhão da Polícia Militar, em Barbacena, e participou ativamente da Revolução Constitucionalista de 1932, na região de Ponte Nova, segundo o coronel e pesquisador Antônio Fernando de Alcântara em seu livro “Paragens de Rosa” (pp. 108).
O universo singular que apresenta os personagens reais e imaginários confirmam essas assertivas. Guimarães Rosa em seu livro “Sagarana”, no conto “O Duelo”, demonstra todo o seu conhecimento de tática e estratégia militar. A descrição que faz da caçada implacável de Cassiano Gomes, ex-anspeçada da PM (posto acima e soldado), a Turíbio Todo, o papudo, é propriamente uma verdadeira estratégia de guerra. Nesse conto, Rosa se utiliza de seus conhecimentos militares para relatar a perseguição: uma verdadeira epopeia. Ele cria no imaginário todo um teatro de operações ambientado em estradas, lugarejos e povoados até chegar à região de Guaxupé, no Oeste de Minas.
II- Os personagens
Turíbio Todo era seleiro de profissão. Possuía um papo, aí o apelido de papudo. Em Vista Alegre era conhecido como uma pessoa má e vingativa. Era casado com Dona Silivana. Mulher bonita, de grandes olhos de cabra tonta.
Cassiano Gomes, ex-anspeçada do 1ª Pelotão da 2ª Companhia do 5º Batalhão da Força Pública, sabia manejar o ZB tchecoslovaco e até as metralhadoras pesadas Hotchkiss. Era inseparável da Parabellum e foi excluído da Força Públicas por problemas cardíacos.
Dona Silivana. Mulher bonita, de grandes olhos de cabra tonta. Tinha sábios desígnios na cabecinha. Traia o marido com Cassiano Gomes.
Chico Barqueiro era o dono da barca que atravessava o rio, transportando pessoas e animais. Homem grandalhão ouviu a história de Cassiano Gomes.
Antônio - Timpim, apelido que não gostava, era também conhecido como Vinte-e-um, matou Turíbio Todo.
O duelo durou cinco meses e meio. Cassiano Gomes com 28 anos era melhor estrategista , enquanto que Turíbio Todo, mais velho, era melhor tático e conhecia o terreno como a palma da mão. Ambos trocaram de montaria várias vezes com o intuito de um engar o outro, como ocorre em uma guerra. Pela narrativa, neste ambiente, o que se percebe claramente é que na verdade um tinha medo do outro, conforme a passagem a seguir: “E nenhum eles era capaz de meter-se em passagens de cavas nem de arranchar duas noites seguidas no mesmo pouso, nem e atravessar uma baixada aberta à vista dos morros” (pp.164).
III- O enredo
Turíbio Todo saiu para pescar, avisando a esposa que dormiria na casa do primo Lucrécio. Ao chegar à beira do rio levou uma topada num toco, além de sofrer com os mosquitos. Assim, mudou de ideia e voltou para a casa sem avisar a mulher. Ao chegar em casa, já de noite, encontrou-a em pleno adultério com Cassiano Gomes. Afastou-se de mansinho, sem dar alarme indo cozinhar o seu ódio em panela fria.
No outro dia chegou em casa muito gentil, sem alarde, preparou o seu cavalo, colocou os apetrechos e comida no alforje e disse à mulher que iria caçar pacas. Na quinta-feira de manhã foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. Vendo-o à janela de costas para a rua, e como bom atirador, baleou o outro bem na nuca e correu para a casa. Não pensou em matar a mulher. Só que houve um pequeno engano: iludido pela semelhança alvejou não Cassiano Gomes, mas seu irmão Levindo Gomes. Descobriu isso quando subiu na montaria e partiu a galope. Após o enterro do irmão, Cassiano Gomes fechou a casa (era solteiro), comprou a besta Doradilha, pegou suas armas: uma Wihchester e uma Parabellum e partiu no encalço do fugitivo.
IV- A caçada
Logo que pegou a estrada Cassiano Gomes imaginou que Turíbio Todo teria ido à direção do povoado Piedade do Bagre. E estava certo. À medida que andava perguntava por Turíbio Todo, sem, contudo dar mostras de quem era e porque perguntava. Logo, logo, perto da localidade conhecida como Saco dos Cochos eles se cruzaram a pouca distância um do outro. Para não ser percebido Cassiano Gomes passou a andar à noite. Para despistar, ambos trocavam de montaria várias vezes. Turíbio Todo, inclusive, chegou a trocar as ferraduras de seu cavalo. Certa vez, viajavam em linhas paralelas, convergindo no porto da bolsa, no rio Paraopeba. Ali Cassiano Gomes parou e ficou de tocaia escondido debaixo de um couro curtido. Como o outro não apareceu, foi embora.
Turíbio Todo espreitava de longe e viu a partida de Cassiano Gomes. Aí apareceu e atravessou o rio na bolsa sem dar muita trela ao Chico Barqueiro e seguiu em direção a Oeste, até a cidade de Guaxupé. Cansado, Cassiano Gomes volta para a casa. Ao visitar a mulher fatal – dona Silivana – esta lhe mostra carta recebida pelo marido. Aí Cassiano Gomes muda de ideia e sai novamente em perseguição a Turíbio Todo, continuando a caçada. Só que ele adoeceu gravemente em um povoado muito pobre. Ali conheceu um morador, o Antônio, apelidado de Timpim e Vinte-e-um, que o acolheu em sua casa. O filho do Timpim estava muito doente e ele não tinha dinheiro para buscar o médico. Vendo aquilo, Cassiano Gomes, já à beira da morte, chamou o rapaz e contou-lhe toda a sua história e deu-lhe todo o dinheiro para buscar o médico. Antes, porém, fez-lhe prometer que vingaria a morte do irmão. O médico veio e o filho foi curado. Logo após Cassiano Gomes morre e a notícia corre em toda a região.
Turíbio Todo, que já se encontrava em São Paulo, ficou sabendo ao receber a carta de sua mulher convencendo-o a voltar para casa.
V- Epílogo
Turíbio Todo foi convencido pela esposa. Comprou mala, presentes, colocou um lenço verde no pescoço para disfarçar o papo e partiu de trem. Ao chegar, ansioso e com saudades da mulher, sabia ainda que teria de percorrer um dia ainda de cavalo. Com pressa, conseguiu um cavalo emprestado, almoçou e começou a caminhada. Venceu a primeira légua. De repente ouviu um tropel de galope que vinha atrás. Parou e chegou sem cavalo para a beira da estrada e esperou. Apareceu um cavaleiro montando um cavalinho magro que freou quase encostando em Turíbio Todo. Andaram juntos um bom tempo até que o homem um capiausinho pergunta: “Ainda que mal pergunte, o senhor será mesmo o Turíbio Todo, seleiro lá na Vista Alegre?” “Sou sim, vim de São Paulo ... como é que está sabendo?” “Me contaram lá no comércio...” Continuaram cavalgando e conversando.
Turíbio Todo já estava até simpatizando com o capiausinho. Subiram morro, desceram morro e o caminho entrou em um mato fechado, onde tudo era silêncio e sombra. De repente, Turíbio Todo estremeceu ao ouvir firme e forte outra voz que vinha do capiau: “Seu Turíbio! Se apeie e reza que agora vou lhe matar!”. “Que é, que é? Tú está louco”? “Não grita seu Turíbio, que não adianta. Eu prometi ao meu compadre Cassiano Gomes. Foi ele que salvou a vida de meu filho e eu prometi a ele. Turíbio Todo pediu, implorou, apelou dizendo que também tinha família, etc... “Se apeie seu Turíbio ...”, repetiu o capiau. Aí, Turíbio Todo levou a mão na testa se benzendo ...” em nome do padre, do filho, do Espírito Santo amém”.
Timpim Vinte-e-um, o capiau, puxou a garrucha que não negou fogo. Turíbio Todo pendeu-se de lado e se afundou na sela com uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo correu assustado e o pé do defunto se soltou do estribo e o corpo ficou estatelado no chão. Timpim Vinte-e-um fez também o nome do padre e o cavalinho pampa se meteu, de galope, por uma trilha, fugindo do estradão...
Sebastião Alvino Colomarte
*Da Academia de Letras João Guimarães Rosa de Cordisburgo e diretor-presidente do Centro de Integração Empresa-Escola de Minas Gerais (CIEE/MG)
Imagem: Acervo Coronel Alcântara
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