Em 2005 visitei Lavras Novas, um distrito de Ouro
Preto, lugar mágico com a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres no centro do
vilarejo, datada do século 18, e muitas casinhas, que chamo de Poesias de
morar, e muitas igrejas e capelinhas, que passo a chamar de Poesias de rezar.
Já me despedindo daquele burgo singular, atravessei a rua do restaurante onde
sempre almoçava e dei de cara com uma minúscula capelinha de pau-a-pique. Como
na piada, porque o cachorro entrou na igreja? Porque a porta estava aberta, no
caso nem porta tinha, entrei. Num pequeno nicho entronizada estava uma imagem
de madeira com a seguinte inscrição: Nossa Senhora da Palavra.
Chegando em São Paulo fui logo contar a novidade para
a minha turma da Fundação Vieira Souto, que se reunia na hora do almoço na
Editora Abril. Entidade sem fins lucrativos, a não ser nossas risadas mais
gostosas, um bálsamo a que nos permitíamos para aliviar os reflexos de um
ambiente corporativo tóxico em que trabalhávamos.
NOSSA SENHORA DA PALAVRA
Nossa Senhora da
Palavra,
padroeira de quem
escreve,
conselheira de quem
fala.
Negra magnífica que
governas
o rastro das
sílabas;
mulher que iluminas
os descampados de
Minas;
e que guiaste
a rosa de Drummond,
as penas de
Alphonsus,
as veredas de Rosa.
No ribeirão
turbulento
de nossa fala,
dá-nos a graça de
fisgar
com linha clara
o peixe arisco da
palavra.
Do peixe vivemos.
Todos os dias — por
vaidade
ou para nosso
sustento —
enchemos o ar
e gotejamos no papel
incessantes
cardumes de palavras.
Nossa Senhora da
Palavra,
dá que possamos
distinguir
entre o verbo que
abraça
e o dizer que fere;
entre o termo solar
que acende a luz do
diálogo
e o vocábulo
sanguíneo
que declara guerra.
Praticantes
humildes da palavra,
sabemos que há
tempo de pescar
e tempo de lançar o
anzol
para fisgar o vazio
e o recolhimento.
Portanto, Senhora,
dá-nos a claridade
magna da palavra
e a infinita
sabedoria do silêncio.
27/02/2005
Este poema-oração virou santinho, distribuído para o círculo de amigos,
a maioria trabalhadores da Palavra, e logo a santa de tantos devotos já estava
a merecer uma igreja. Mas a verdade é que poucas informações tínhamos sobre
ela. Na época liguei para o setor de Turismo de Lavras Novas para saber mais
sobre a imagem que tinha visto na capelinha da Rua Nossa Senhora dos Prazeres.
A voz do outro lado foi enfática: “A senhora deve estar variando, aqui não tem
nenhuma Nossa Senhora da Palavra”.
Comuniquei o logro aos já devotos que imediatamente me acalmaram: “Se não é real, ela apareceu para você e para o Machadinho. Imprima-se então a lenda e ela passa a ser a nossa padroeira”. Nesta altura a quantidade de devotos só aumentava. Não era possível voltar atrás. Notícias vindas de Madri davam conta que em 14 de janeiro ela era celebrada por lá.
Depois disso as buscas sobre a veracidade dos fatos em Lavras Novas
ficaram paradas no devagar depressa dos tempos até que, em 2022, numa viagem
que começa pela cidade do Coração, Cordisburgo, plena de reencontros, mais de
dois anos depois da pandemia que nos imobilizou, resolvemos, Cleide, Moises,
Murilo e eu, na volta, ir a Lavras Novas resgatar a estória. Saímos da Cidade
do Livro Vivo, da Casa da Palavra, para
uma dobra do tempo, à procura do quem das coisas, em busca do mistério da
Palavra. João Rosa devia de estar de carona nesta aventura, se rindo de
felicidade, que se acha em horinhas de descuido.
Quando chegamos, desci do carro bem em frente a uma construção que me
lembrava a capela da aparição. Entrei lá e constatei com tristeza que a
vegetação tomara conta do recinto, resumido a uma ruína. Mas meu desejo de
elucidar a estória não me fez desanimar. Exploramos um jardim, que remeteu ao
da personagem Lina, de Corpo de Baile.
As flores do cosmo ou brisa lá se apresentavam de cores variadas: branco, rosa,
vermelho. Admirávamos o conjunto de construções singulares, curiosos de saber
quem os arquitetara. O certo é que parecia ser alguém que viera a pé de
Woodstock ou estivera também procurando o caminho para Machu Picchu.
Neste mesmo dia, na hora do Angelus, fomos caminhar e, vendo a igreja
aberta, entramos bem na hora em que, no fim da missa, o padre abençoa os fiéis.
Abençoáveis estávamos por Nossa Senhora dos Prazeres.
A emoção de rever a imagem fez meu coração saltar pela boca, mas me
faltaram palavras diante de Nossa Senhora da Palavra. A imagem era a mesma que
eu trazia na lembrança, já que nos tempos de máquinas analógicas e sem o
recurso do celular, eu nenhuma foto tirara. Sobre uma toalha colorida a santa
foi caprichosamente colocada, mas o enigma da inscrição com o nome continuava.
Suzana disse que havia, sim, a inscrição, mas que era de papelão e se houvesse
tempo ela procuraria.
Na verdade eu estava diante de uma Nossa Senhora muito particular, a de
Suzana, que a batizou de Nossa Senhora dos Prazeres da Palavra. Da mesma
maneira como Nossa Senhora de Monserrat se desdobra em Nossa Senhora da
Palavra. Dois mistérios a ser estudados. O milagre que se deu em Madri se
repete séculos depois em Lavras Novas.
Suzana, narrou então a fantástica estória de como chegou naquele
povoado, na época fechado para o mundo, mas essa é outra história, fica pra uma
outra crônica.
No vasto terreno de brisas, ou cosmos, e flores solares, Suzana manteve
durante muito tempo uma casa de chá, onde também se apresentava como cantora e
acordeonista. A construção tem um design singular e um nome curioso, Curdiá,
que remete a cordial, ao coração.
Fomos convidados para uma Cerimônia do Chá no dia seguinte. Sentados a
uma mesa enfeitada de flores, ela nos serviu um chá de capim-cidreira com malva
e mel do cipó-de-são-joão acompanhado de um “bolo bobo” enfeitado de lantanas
multicoloridas. Fazia parte da cerimônia a leitura de um livro artesanal que
ela esteve e está escrevendo, colando flores e folhas secas, páginas ornadas
com desenhos minúsculos feitos à mão, O Livro do Vazio, com reflexões de uma
vida, reflexões sobre a Palavra. Parece que Suzana conhecia os versos do nosso
poema-oração e neles se inspirara:
Praticantes humildes
da palavra,
sabemos que há tempo
de pescar
e tempo de lançar o
anzol
para fisgar o vazio e
o recolhimento.
O tempo com ela foi curto para tantas perguntas que ainda gostaria de
fazer, muito por que a gente não quis interromper a narrativa de Suzana, muito
riobaldiana. Refletindo sobre esse encontro e, posteriormente, vendo as
postagens de Suzana no Face com arranjos de flores e mandalas que ela cria, a
maneira como sacraliza e ritualiza o seu cotidiano, a coragem de se desgarrar
de uma vida que não fazia sentido em Belo Horizonte, indo morar nesse lugar na
época isolado, com muita parecença com tantos outros lugares por onde passei e
onde tive ímpetos de me estabelecer: São Thomé das Letras, Arraial d’Ajuda,
Trindade, Canoa Quebrada, sinto que ela é meu duplo que realizou o que eu
queria ter realizado. Pra mim esta viagem foi mais que um resgate da estória da
aparição da imagem de Nossa Senhora da Palavra. Foi como se tivesse entrado
numa cápsula do tempo e encontrado o outro eu que viveu uma vida que eu queria
ter vivido em toda a sua profundidade. Como disse Jung em seu livro Memórias, sonhos e reflexões: “Minha
vida é a história de um inconsciente que se realizou”.
Ave, Nossa Senhora da Palavra, Ave, Suzana.
Ter vivido esses desacontecimentos importantes comprova que não somos
turistas, mas viajantes caçando estórias, alegriazinhas e epifanias, à maneira
de Guimarães Rosa.
Ave, Palavra. Ave, João. Ave, Suzana.
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