Assistindo pela sétima vez Outro sertão, documentário realizado por Soraia Vilela e Adriana Jacobsen
sobre o período em que Guimarães Rosa viveu na Alemanha como cônsul-adjunto em
Hamburgo, de 1938 a 1941, me sobrevêm algumas questões. Uma delas as coragens
do menino míope e precoce que saiu de Cordisburgo aos 9 anos de idade para se
formar médico, exercer a profissão por pouco tempo em Itaguara e como médico
oficial na Força Pública para abandoná-la porque não conseguia salvar todos os
seus pacientes.
Mas o juramento que ele fez quando se formou em
medicina ele manteve, junto com Aracy, sua segunda mulher, ao salvar judeus do
horror do Holocausto, concedendo vistos para o Brasil, contrariando as
determinações do governo brasileiro. No documentário, os depoimentos dos
sobreviventes são pungentes. Guimarães Rosa pouco falava sobre isso, e dá uma
explicação que faz todo sentido: que ele, como diplomata, consertava o que os
políticos estragavam.
No filme emerge também outra coragem: como Charles
Chaplin no filme O grande ditador (1940),
Rosa cutuca a onça com vara curta (no caso ninguém menos que Hitler) e chega a
ser investigado e advertido por isso. Em seu diário ela anota: “Há países
engraçados, onde só o governo tem o direito de espalhar boatos, roubar,
mendigar, etc.”
Em “O mau humor de Wotan”, publicado postumamente em Ave, Palavra, em que ele descreve a sua relação
com Marion Madson e Hans-Helmut Heubel, amigos que fez na Alemanha, e a
estúpida morte deste servindo na guerra, emerge o Rosa pacifista: “Hans Helmut
não dava no coração o mínimo pouso à Guerra”. “Bem-aventurados os mansos,
porque eles herdarão a Terra.”
Rosa era nesta época um escritor em construção. Estava
reescrevendo Sagarana, que fora
preterido no concurso Humberto de Campos. Sob a tensão dos bombardeios Rosa
peleja: “30 de maio de 1940, quinta-feira, 12 horas e 20 minutos, estou
trabalhando, corrigindo o último trecho de ‘O burrinho pedrês’: Mugiram as
sirenes. Alarme”. E descreve a atmosfera sombria em que está imerso. “Cá
embaixo, a treva, e uma névoa fantasmagórica dissolvida na treva.” E a sua
revolta com as injustiças: “13 julho de 1940, num recanto da margem, uma praiazinha
para crianças. Mas para estragar toda a mansa poesia do lugar arvoraram num
poste uma tabuletazinha amarela: lugar de brinquedo para crianças arianas.”
É uma pena que esse Diário de Guerra não tenha sido
publicado, e só conhecemos alguns trechos. Porque não se sabe de nenhum
escritor latino-americano que tenha vivido este período tão de perto, daí a
importância desses relatos.
E dia 20 de dezembro estreia Passaporte para Liberdade, minissérie da Globo focada na participação
de Aracy. Aproveito a ocasião para homenagear esta
mulher incrível.
Uma certa estória, passada no
longe da noite dos tempos, precisa ser lembrada, sempre, para que se pague uma dívida de reverência com uma
mulher de grande estatura.
Ela salvou a vida de uma
centena de judeus, matando a fome deles com comida desviada do consulado,
providenciando passaportes cristãos, transportando-os no porta-malas de seu
Opel Olympia, levando alguns aos navios onde embarcariam para uma terra
ensolarada.
A Aracy, que carregava no
sobrenome Moebius o símbolo do infinito, Rosa dedicou Grande Sertão: Veredas. A Aracy, minha mulher, Ara, pertence esse
livro.
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