Coluna Anacrônicas: O pássaro encantado

Mano João

Depois de 54 anos você continua encantado, em pássaros, em árvores, em beleza, em palavras tatuadas em nós. Se em Cordisburgo estivesse, levaria uma rosa à casa de janelas grandes que você nos deixou de herança, não como um museu, mas como um lugar multiúso em que, com todos os abençoados guardiões da sua obra, perpetuamos as suas palavras. Alguém aí de Cordisburgo leva a rosa pra mim?

Os tempos estão difíceis, faz dois anos que não pisamos em seu solo sagrado, e esperamos ansiosos que em 2022 possamos estar lá. Enquanto isso, conto pra você as nossas travessias passadas.

Quando julho se avizinha, arrumamos as tralhas da Cumitiva Devotos do Rosa para empreender mais uma travessia pelo sertão. Partimos em viagens “inventadas no feliz”, por estradas poeirentas e esburacadas, procurando pelo quem dos lugares, pelo sim dos horizontes. Da sua Cordisburgo, a boca do sertão, “A cidade do livro vivo”, rumamos para Morro da Garça, Andrequicé, Fazenda da Tolda, Capela de Manuelzão, a confluência do De Janeiro com o São Francisco, Itacambira, Fazenda Santa Catarina, a Guaravavacã do Guaicuí, ao Paredão... E não descansamos enquanto não encontrarmos o Liso do Sussuarão. Vamos em busca de seus rastros, dos rastros de Riobaldo, Diadorim, Soropita, Soroco... Sua obra inaugurou uma categoria de doidos, os viajantes literários.

Não somos simples leitores, somos, com muito orgulho, Devotos do Rosa. Aqueles que plantam rosas de crepom com suas frases nas cidadezinhas singelas e em Matrix, quando percorremos um elevado de duro concreto e realizamos um grande evento: Grande Minhocão: Veredas. Roseamos em meio às asperezas da vida, levando sua Palavra onde ela possa ser apreciada. Por sua causa, vivemos em constante epifania. Ah, rosear virou verbo! Bonito né?

No lugar físico onde estão as suas lembranças, suas cadernetas, seus cartões-postais, seus originais, no Instituto de Estudos Brasileiros, na USP, nos reunimos para ler a sua obra em voz alta na Oficina de Leitura Guimarães Rosa. Um templo de adoração à sua Palavra.

Você nem imagina do que nós somos capazes. Já passamos 36 horas lendo Grande Sertão em voz alta dentro da USP. E 12 horas lendo as cadernetas e saboreando os pratos que você amava! 

Somos pactários, com sua cidade, com seus livros, com você, que nos enredou na imortalização de sua obra. É cada festa que a gente faz na casa que você nos deixou de herança, no seu quintal: saraus, peças de teatro, rodas de leitura.

Sonho sempre com você. Num desses sonhos eu ficava hospedada numa casa cuja fachada era a capa amarelinha do Primeiras Estórias. Lá dentro você me confiava uma pasta que eu deveria entregar para alguém muito importante, como num texto inacabado que encontrei recentemente no IEB entre seus guardados. Acho que este sonho é o ressoar de uma fala sua para o Günter Lorenz: que você tinha escrito uma obra para durar pelo menos 700 anos. 

Se depender da gente, vai durar. Parasempremente! Coraçãomente!

Créditos: ilustração: Maristela Guedes/Foto: Regina Pereira