Anos atrás, em São Paulo, no lançamento de Lutas e auroras: Os avessos do Grande Sertão: Veredas, o autor, Luiz Roncari, num papo informal, nos confidenciou, com brilho nos olhos: “Cordisburgo, acabei de chegar de lá, aquilo é altíssima civilização”. Essa frase ficou ecoando na minha cabeça e me remeteu à minha primeira vez numa Semana Roseana, a que comemorava os 50 anos de Grande Sertão: Veredas. A presença desta alta civilização foi o que constatei, embora naquele momento não a nominasse assim. Me lembro do impacto de estar numa cidade onde, passados quase 40 anos do encantamento do menino míope que nascera no casarão engalanado para a festa, ainda se respirava a sua literatura. Pra mim foi a iniciação a um mundo encantado. Daquela vez retornei para casa com a missão cumprida: uma matéria publicada na National Geographic que ganharia um Prêmio Abril de Jornalismo no ano seguinte. Além da matéria, gotejei um intertexto, O aniversário do livro - Uma reportagem poética, que compartilho agora:
“Nós viajamos infinitos quilômetros para a festança de 50 anos do Livro. Alguns atravessaram o mar. O chamado cada um recebeu à sua maneira, em tempos diversos, quando O conheceram. Estavam quase todos lá: os engraçados alemães, os paulistas, muitos meu, os previsíveis franceses, os mineiros, demais, Mercês, a Catalã, discutindo a utilidade da inutilidade, e até um dinamarquês, assombrado com a inclemência do sol do sertão. Severino, o pernambucano gravetinho de olhos de São Francisco, ousou plantar 20 mil rosas de crepom na cidadezinha singela. Muitas estampavam as mais belas frases do Livro. Josino, o violeiro, veio do Jequitinhonha pilotando um Passat rosa-choque, trazendo o Encantado pra gente brincar. Nos acabávamos atrás do boi: crianças, doidos, Precatão, velhos, seu Tuninho Sozinha e a sanfona Saracura, Johnnynho e sua viola, Rodolfo e Miguel, minha amiga Ceres, os cachorros e suas pulgas: “Evém o Sol, evém a Lua, evém o Encantado passeando pela rua”.
Vivíamos a epifania. De presente, ao aniversariante oferecemos nossos olhos, esfolados pela intensa quilometragem a percorrer as suas quase 600 páginas. Tantos recitavam trechos de cor: “Dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão”. No Zoológico de Pedra, piqueniques literários, nós esparramados na Preguiça gigante, adormecida desde a Pré-História. Numa manhã de brumas, levamos o Livro e as rosas para o salão maior de Maquiné, e no silêncio absoluto da gruta rezamos mais algumas páginas.
Em tardes seres, entre retalhos e panos rústicos, bordávamos dizeres do Livro, agulhas guiadas por serenas senhorinhas que dele já sabiam o que seus avós e bisavós contavam. Com elas aprendíamos uma pronúncia firme, carregada, tomávamos café com prosa, desaprendíamos a pressa, ganhávamos uma intimidade respeitosa.
As noites nos davam as fogueiras nos quintais das casas zelosas, de cantoneiras ornadas de crochê e jardins de suculentas, dálias e amores-magoados. Com o pactário seu Zé Padre e a viola de cocho, cachaça com mel e umburana, cantoria, lua cheia, Brasinha, doce de mangaba e seu Tião Medonho, as estrelas brilhando com mais agarre de alegria.
Em volta do fogo ancestral, articulando tantas línguas, estávamos todos pacificados pela beleza. “Tudo o que é bonito é absurdo”, nos ensinava o Livro. Dois anos depois muitos refizeram a viagem pra festejar os 100 anos do Autor. Que não estava vivo, mas era muito mais que se. Ele desejara muito ter vivido tanto, ou mais de uma vez – “Para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente”, ele afirmava, convicto. Mitificava que ia escrever um dicionário, a sua autobiografia definitiva. Mas essa é outra estória, fica para a próxima fogueira.”
E no devagar depressa dos tempos lá se vão 15 anos. Dilatamos a quilometragem, voltamos para carimbar o passaporte nas semanas Roseanas que se sucederam, o encanto sempre se renovando, mesmo amargando a distância física a que a pandemia nos obrigou nas duas últimas edições.
A frase do Roncari continua a fazer todo o sentido. Uma altíssima civilização que se mantém graças ao trabalho dos guardiões da obra, a quem somos muito gratos. Uma altíssima civilização que se espraia sertão afora: Morro da Garça, Andrequicé, Sagarana, onde a obra resiste a despeito desses tempos difíceis que atravessamos. Um feito digno de uma altíssima civilização que Guimarães Rosa intuiu.
Regina Pereira
Fotos: Reprodução/Arquivo
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